Livro revela histórias que São Paulo deixou de contar

A exclusão de negros e mulheres na formação da identidade paulista é discutida em A Cor da Modernidade, de Barbara Weinstein

 28/07/2023 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 31/07/2023 as 18:03

Texto: Leila Kiyomura
Arte: Carolina Borin (estagiária)*

Operários, de Tarsila do Amaral, obra de 1933 - Imagem: Reprodução/Acervo Museu do Palácio dos Bandeirantes

Quem quiser saber a razão de a estátua do bandeirante Borba Gato, na capital paulista, ter sido incendiada e compreender detalhes da real história de São Paulo encontra um caminho inusitado para refletir. O livro A Cor da Modernidade – A Branquitude e a Formação da Identidade Paulista, da historiadora norte-americana Barbara Weinstein, apresenta uma nova visão e compreensão das raízes paulistas. Lançado pela Editora da USP (Edusp) e traduzido por Ana Maria Fiorini, a obra surge num momento de questionamentos sobre a identidade política, cultural e social brasileira. 

Na contracapa do livro, o leitor já se depara com a opinião de três pensadores e historiadores. “Barbara Weinstein se propõe analisar a rebelião paulista de 1932 em São Paulo, que ficou conhecida como Revolução Constitucionalista, e suas representações nas comemorações do IV Centenário da fundação da cidade, em 1954”, explica Maria Ligia Coelho Prado, Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “O elo que une os dois acontecimentos passa pela interpretação do sentimento regional e da construção da identidade paulista.”

Maria Ligia destaca que a pesquisa da historiadora, no entanto, não se limita às fronteiras de São Paulo. “ Com densidade e rigor teóricos, a autora se debruça sobre conceitos e problemas centrais para a compreensão da história do Brasil do século 20: nação e região, identidade, branquitude, raça, gênero, modernidade e progresso.”

A professora Maria Ligia Coelho Prado - Foto: Léo Ramos Chaves/Revista Fapesp

Paulo Pontes - Foto: Lattes

O professor Paulo Fontes - Foto: Lattes

Na avaliação de Paulo Fontes, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a pesquisa de Barbara Weinstein mostra como a orgulhosa identidade paulista tem cor. “Nesta obra, ela detalha como a imagem de sucesso, empreendedorismo e superioridade largamente cultivada pelas elites paulistas e disseminada entre a população do Estado foi historicamente construída e ancorada em distinções de raça, gênero e classe”, escreve ele, também na contracapa de A Cor da Modernidade. Fontes concorda em que a modernidade paulista só pode ser compreendida à luz de um processo de racionalização que vinculou o processo econômico da região à branquitude. “Assim, foi construído um poderoso discurso de superioridade racial e cultural dos paulistas em relação ao restante do País e, em especial, ao Nordeste, visto como sinônimo de um atraso intrinsecamente conectado à sua população negra, indígena e mestiça.”

Para a professora Maria Helena Machado, da FFLCH, o livro, ao apresentar dois momentos marcantes – a Revolução Constitucionalista e o IV Centenário da fundação da cidade de São Paulo –, apresenta uma nova visão da integração de São Paulo. “Trata-se de um livro ambicioso e muito bem fundamentado, que revê a interpretação da formação regional paulista, sugerindo que as questões de raça e também de gênero se encontram no cerne da construção de uma identidade que se tem como branca, viril, afeita ao progresso e à modernidade”, acrescenta a professora, no seu texto publicado na contracapa do livro.

Maria Helena Pereira Toledo Machado - Foto: FFLCH/USP

A professora Maria Helena Pereira Toledo Machado - Foto: FFLCH/USP

“Mesmo antes da abolição da escravatura, em 1888, o Brasil ganhou um tipo de reputação no exterior como uma sociedade racialmente aberta, fluida e tolerante, especialmente em comparação com os Estados Unidos”

A Cor da Modernidade é uma referência para pesquisadores, historiadores, escritores, pensadores e paulistanos. No decorrer de suas 656 páginas, o leitor acompanha Barbara Weinstein – que é professora de História da Universidade de Nova York e ex-presidente da American Historical Association, ambas nos Estados Unidos – em suas análises e reflexões buscando as origens da história e cultura de São Paulo e do Brasil em livros, pesquisas acadêmicas, discursos políticos e jornais.

“O foco nesses dois momentos distintos, separados por duas décadas, serve para iluminar mudanças nos lugares e veículos para a formação de identidade”, afirma a historiadora, referindo-se à Revolução Constitucionalista de 1932 e às comemorações pelo quarto centenário de fundação da cidade. “Certamente, algumas das mudanças refletem as naturezas bastante díspares dos dois eventos sob análise: os tipos de publicidade permitidos em uma revolta armada são substancialmente diferentes daqueles disponíveis aos organizadores de atividades comemorativas. Outros, no entanto, refletem novos modos de pensar sobre públicos e acerca da relação entre indivíduo e sociedade, assim como sobre os recursos mutáveis para moldar a opinião pública.”

Sobre o lugar da democracia racial na sociedade brasileira, a historiadora observa: “Mesmo antes da abolição da escravatura, em 1888, o Brasil ganhou um tipo de reputação no exterior como uma sociedade radicalmente aberta, fluida e tolerante, especialmente em comparação com os Estados Unidos, com suas formas rígidas e violentas de exclusão racial”.

Barbara Weinstein autografa um exemplar do seu livro durante o lançamento da obra, em junho passado, em São Paulo - Foto: Carla F. Fontana

Barbara Weinstein observa que a denominação “democracia racial” só começou a ser de “uso comum” com o livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. “Não faltam críticas acadêmicas à obra de Freyre. Ele tem sido acertadamente criticado por reforçar a ficção da escravidão como uma instituição benevolente.” A historiadora pondera: “Nos últimos 20 anos, os estudos acadêmicos menos polêmicos sobre relações raciais no Brasil migraram da simples denúncia da democracia racial como um ‘mito’ para o reconhecimento da ampla aceitação dessa ideia, inclusive entre os pobres e pretos, para os quais ela representa não tanto um retrato da realidade brasileira, mas uma imagem da sociedade à qual os brasileiros deveriam legitimamente aspirar.”

“Mas isso só aprofunda a necessidade de se perguntar como pode ser explicada a coexistência, no mesmo espaço nacional, de um robusto discurso sobre democracia racial e evidências copiosas de racismo e desigualdade racial”. A historiadora pontua: “Uma explicação comum é a lacuna entre teoria e prática. Os brasileiros de todas as origens raciais querem afirmar que não têm preconceito, mas na vida cotidiana ainda tomam decisões ou comportam-se de maneiras que privilegiam os de pele mais clara ou aparência mais europeia”.

A Cor da Modernidade – A Branquitude e a Formação da Identidade Paulista, de Bárbara Weinstein, Editora da USP (Edusp), 656 páginas, R$ 83,20

*Sob supervisão de Moisés Dorado


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